2. Marina Iris – Voz Bandeira

Pra libertar corpo, alma, prazer

Leonardo Lichote

Em primeira pessoa, a voz de mulher preta se afirma sobre os tambores nos segundos iniciais do disco: Eu sou a lágrima / Eu sou o pano. Marina Iris – uma das mais potentes revelações da música brasileira nesta década – não deixa dúvidas sobre a voz que se mostra ali. Uma voz plena da dor (a lágrima) e da sua superação (o pano) – sobretudo sua superação. É esse canto que ela ergue alto como estandarte em Voz bandeira (Joia Moderna). Um disco de muitas vozes – Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Elisa Lucinda, Fabiana Cozza, Marcelle Motta, Leci Brandão, Carolina Maria de Jesus, entre muitas outras, Marielle Franco, a quem é dedicado o álbum. Um disco de muitas bandeiras, a mais alta delas a grandeza da música e da palavra – política e poesia, luta e dança, força e graça, tudo junto como na vida.   

Canto pra libertar corpo, alma, prazer, entoa Marina no fim da primeira faixa, Voz bandeira (parceria da cantora com Raul DiCaprio). Nesse que talvez seja o verso central do disco, ela deixa claro que a libertação na qual mira é maior: corpo, alma, prazer. Libertação como a que o negro forjou também pelo samba, que se reinventa e revive a cada uma das muitas rodas que se espalha pelo Rio – cenário no qual a cantora é personagem ativa.   

Em Voz bandeira, seu terceiro disco, Marina se revela como na capa de Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira campeã de 2019. Cravada no muro, arte nascida do calor da rua (Rueira é não por acaso o nome de seu disco anterior, de 2018), a urgência de tinta fresca – mesmo quando carrega dores e superações nascidas noutros tempos, como nos versos de Quarto de  despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, declamados por Elisa Lucinda em Travessias (de Ana Costa e Manu da Cuíca).

O cruzamento de música e poesia costura Voz bandeira. Marina já tinha a ideia de fazer um disco com esse nome (surgido num texto que Leandro Vieira escreveu sobre ela) quando recebeu o convite de Marcio Debellian e Zé Pedro, idealizadores do projeto de encontros Joia ao Vivo. A cantora levantou o desejo de ter Conceição Evaristo no álbum, o que se desdobrou no conceito final, de trazer outras escritoras. Conceição Evaristo lê trecho de seu Poemas da recordação e outros movimentos. Além do já citado Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, estão lá Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, e O livro do avesso, de Elisa Lucinda. Diferentes vozes bandeiras que dão peso e leveza às canções que as cercam.

O repertório foi sendo construído – pelas mãos de Marina, Leandro, Marcio, Zé Pedro e Ana Costa, que assina a produção musical do álbum – em torno do conceito da Voz bandeira, do “canto pra libertar corpo, alma, prazer”. Logo após a carta de intenções do samba que dá nome ao disco, a coladeira Travessias expande até Cabo Verde as fronteiras e o alcance das vozes e das bandeiras defendidas no disco. A canção fala sobre os deslocamentos forçados que marcam a história preta – e a reconstrução que se dá a partir desses deslocamentos: Não chora / Querer não queria / Mas a travessia / É nosso lugar.

A sonoridade do disco, expressa nos arranjos de Ana Costa, carregam a mesma potência urbana expressa na imagem da capa – a despeito de dialogar com tradições centenárias e beber delas. Velha senhora (de Teresa Cristina e Leandro Fregonesi) evoca a orixá Nanã com reverência destilada em atabaques e teclados – e na elegância de Fabiana Cozza. Carnaval de rua (de Tomaz Miranda e Manu da Cuíca) traduz a festa – corpo, alma, prazer – na forma como ela se dá no Rio contemporâneo, com a liberdade de alta expressividade e poucos elementos. O arranjo incendiário e surpreendente, apenas com o pandeiro e o tamborim de Larissa Umaytá e o violão de Pedro Franco, é a síntese do folião que desfila pela letra.

O já clássico História pra ninar gente grande – o samba da Mangueira campeã que brada que chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês – é perfeita expressão da voz bandeira de Marina, e aparece aqui sem o peso da bateria de escola de samba mas igualmente contundente. Manu da Cuíca, uma das autoras do samba e parceira constante de Marina, participa da gravação. A presença de Leci Brandão, voz bandeira maior, torna tudo ainda mais fundo.

Onze fitas – canção de Fátima Guedes gravada por Elis Regina – retrata a realidade urbana da morte violenta, onze tiros (Esses tempos não tão pra ninharia, diz o verso referindo-se originalmente aos anos de ditadura militar, que agora ecoam tristemente nos 111 tiros de Costa Barros, nos 80 tiros de Guadalupe e nas patéticas arminhas nas mãos de governantes). E num disco no qual a poesia tem papel central, a canção repete: a verdade não rima.

De autoria de Thiago da Serrinha e Bruno Barreto, cantada por Marina com Marcelle Motta, o semba Mana que emana (a língua portuguesa se mostra ternamente enorme já nesse título) retoma a conexão com a África – agora via Angola. Ele prepara o terreno para o movimento final do disco, Pra matar preconceito – canção de Raul DiCaprio e Manu da Cuíca que se tornou hit das rodas de samba deste Rio repleto de África, de lágrima e de pano. Com os pés cravados numa urbanidade contemporânea reforçada pelo arranjo de guitarras e cavaquinhos, ijexás e souls, Marina grava pela primeira vez sozinha a canção que lançou com o coletivo ÉPreta. Misturada, preta, papo reto, rueira – fecho exato para este Voz bandeira, de punho erguido e palma de mão.

Repertório

1 – Voz bandeira

2 – Travessias / Quarto de despejo(part. Elisa Lucinda)

3 – Texto: Um defeito de cor (part. Ana Maria Gonçalves)

4 – Velha senhora

5 – Carnaval de rua

6 – História pra ninar gente grande (part. Leci Brandão)

7 – Texto: Da calma e do silêncio (part. Conceição Evaristo)

8 – Onze fitas

9 – Texto: Mandiba (part. Elisa Lucinda)

10 – Mana que emana (part. Marcelle Motta)

11 – Pra matar preconceito

Ficha técnica

Produção musical e arranjos: Ana Costa

Produção: Milena Afonso

Gravado por Leo Shogun Moreira no Estúdio Lab Sônica e por João Ferraz no Estúdio Lontra

Mixado e masterizado por João Ferraz no Estúdio Lontra

Arte da capa: Leandro Vieira

Projeto gráfico da capa: Victor Marques

Produtor Cultural Oi Futuro: Yuri Chamusca


Técnicos Oi Futuro:
Marciel Oliveira
Raphael Fernandes

Joia ao Vivo

Curadoria: DJ Zé Pedro e Marcio Debellian

Produção executiva: Daniel Nogueira e Marcio Debellian

Realização: Debê Produções e Joia Moderna

Projeto gráfico: Pedro Colombo

Patrocínio:

Oi

Governo do Estado do Rio de Janeiro

Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa

Lei Estadual de Incentivo à Cultura

Apoio cultural:

Oi Futuro

LabSônica

Realização:

Debê Produções

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